Quinta-feira, 25 de Outubro de 2007

Para Saul Friedländer, o Holocausto não desaparecerá

O historiador israelita Saul Friedländer – vencedor do Prémio da Paz de 2007 da Associação dos Editores da Alemanha – conversou com a revista alemã "Der Spiegel" sobre a importância dos relatos de vítimas na pesquisa sobre o Holocausto e o fracasso dos esforços na Alemanha para colocar um ponto final na questão. 

Spiegel - Professor Friedländer, em contraste com outros relatos da história do holocausto, no seu livro “"Nazi Germany and the Jews, the Years of Extermination" (“A Alemanha nazi e os judeus – os anos de extermínio”, inédito em português), dá-nos uma ampla oportunidade de ouvir as vítimas através de diários e cartas. Por que não limitou o foco para a história dos perpetradores?
Saul Friedländer:
Porque isso não é suficiente. Basicamente, nós ainda precisamos de um livro que vá além da análise da política alemã e inclua o ambiente – por outras palavras, as igrejas, as elites, a população geral na Alemanha e em outros países – e incorpore as vozes das vítimas, daqueles que foram assassinados.

Spiegel -  Estava interessado no efeito educacional aqui, uma vez que o horror se torna mais vívido dessa forma?
Friedländer:
Não, muitos aspectos só se tornaram claros a partir de uma análise das fontes das vítimas, não de documentos oficiais. Por exemplo, o facto de que os judeus na Alemanha e Europa Ocidental não sabiam o que estava a acontecer – e na Europa Oriental eles não queriam acreditar no que viam. Tome como exemplo meus pais – após a sua deportação da França em 1942, um amigo escreveu para a minha avó, que vivia em Estocolmo, para dizer que meus pais tinham sido enviados para a Alemanha ou para uma reserva judaica na Polónia. Ele não tinha ideia de que eles tinham sido assassinados.

Spiegel - Teria sido diferente se as vítimas soubessem o que estava acontecendo?
Friedländer:
Faria uma grande diferença. Uma coisa era os nazis assassinarem milhões de pessoas que não sabiam o que iria acontecer com elas ou matarem pessoas que já esperavam o pior.

Spiegel - Isso explica porque o processo de extermínio foi tão fácil?
Friedländer:
Sim.

Spiegel - A posição oposta era dada pelo historiador do holocausto Raul Hilberg, recentemente falecido, que dizia que “a melhor forma de entender a realidade da situação é reconstruir os eventos da perspectiva dos perpetradores.”
Friedländer:
Tenho muito respeito por Hilberg. Ele foi o especialista clássico do mecanismo do extermínio. Mas ele só trabalhou com documentos deixados pelos perpetradores e achava que as vítimas iam para morte como cordeiros para o abate. Se ler entre linhas, pode até sentir a raiva com que ele escreve sobre a falta de resistência dos judeus. Mas eles simplesmente não sabiam o que estava acontecendo.

Spiegel - Há outras coisas novas que podemos aprender dos relatos das vítimas?
Friedländer:
Somente esses relatos podem confirmar o comportamento dos assassinos. Elsa Binder, de Stanislavóv, na Galícia, por exemplo, escreveu em seu diário em 1941 sobre como os "Einsatzgruppen" (esquadrões da morte) assassinaram suas amigas Tâmara e Ester, que era conhecida como Esterka. “Espero que a morte tenha sido boa com ela e a tenha levado rapidamente. E que ela não tenha tido de sofrer como ... Esterka que, como vimos, foi estrangulada.” Daí vemos que os Einsatzgruppen não eram constituídos só por  homens que apontavam espingardas contra as multidões aparentemente anónimas de pessoas. O estrangulamento de uma jovem revela, na verdade, o sadismo dos perpetradores, sobre o qual sabemos ainda tão pouco.

Spiegel - Como foi recuperado o diário?
Friedländer:
Foi encontrado num canal próximo de uma estrada que leva ao cemitério em Stanislavóv. As circunstâncias que envolvem a morte de Elsa são desconhecidas. E podemos deduzir algo mais da perspectiva das vítimas: além dos conselhos judaicos e das comunidades religiosas judaicas, também havia famílias, círculos de amigos e indivíduos. O sucesso das suas estratégias para evitar a deportação é – de um ponto de vista estatístico – talvez insignificante, mas é um pequeno capítulo na história geral do período. Por exemplo, só estou aqui hoje porque os meus pais me esconderam numa escola de um convento católico.

Spiegel -  Por outras palavras, a sua ênfase na perspectiva das vítimas tem origem na sua própria experiência?
Friedländer:
Claro. Na verdade, esse não deveria ser o caso com historiadores e o ex-director do Instituto de História Contemporânea de Munique Martin Broszat até disse em 1987 que os judeus eram incapazes de escrever uma história histórica racional do Terceiro Reich porque eles eram tendenciosos – como se um ex-membro da Juventude Hitlerista ou um membro de partido como Broszat pudesse conduzir pesquisa sem nenhuma bagagem biográfica. Isso aborreceu-me bastante na época, mas deparo novamente com essa atitude quando o assunto é discutido com colegas alemães.

Spiegel - Estuda o Holocausto há décadas. Espera que mais descobertas surjam dessa pesquisa?
Friedländer:
Provavelmente não haverá grandes mudanças no quadro geral.

Spiegel - Mas não existem diferenças consideráveis de opinião entre historiadores sobre a questão da razão o Holocausto ter acontecido?
Friedländer:
Está referindo-se ao que eu chamo de “novo funcionalismo”, por outras palavras, a posição tomada por meus colegas Ulrich Herbert, Götz Aly e Christian Gerlach. Eles acreditam que, por razões logísticas ou populistas, os alemães tenderam a buscar objetivos materialistas e originalmente não pretendiam assassinar os judeus. Esses estudiosos afirmam, por exemplo, que a população da Rússia foi assassinada, incluindo os judeus, porque isso era necessário para alimentar a Wehrmacht (as forças armadas da Alemanha), mas eles dizem que isso não era, de forma alguma, o principal objectivo.

Spiegel -  Que objecções tem a esses argumentos?
Friedländer:
Para mim, a ideologia do Terceiro Reich e de Hitler é da maior importância. No primeiro artigo conhecido escrito por Adolf Hitler que trata sobre a questão política, ele alertou sobre o perigo que os judeus representavam para o povo alemão. Isso foi em 1919. E seu testamento político feito no bunker em 1945 contém a mensagem de que os alemães deveriam continuar a luta contra a praga mundial do judaísmo. Podemos, portanto, observar a continuidade do anti-semitismo fanático.

Spiegel -  Qual a razão por que os nazis não mataram os judeus alemães nos anos 30?
Friedländer:
Tenho certeza de que Hitler não perseguia um plano de assassinar os judeus desde o início. A princípio, o objectivo era isolá-los da sociedade, privá-los das suas formas de sobrevivência económica e forçá-los a deixar a Alemanha.

Spiegel - E por que aconteceu o Holocausto?
Friedländer:
Durante a guerra, a Wehrmacht ocupou regiões onde viviam milhões de judeus. O plano era deportá-los, da mesma forma que eles começaram a fazer na Alemanha, de áreas sob controle alemão e enviá-los para uma reserva judaica. Num primeiro momento, essa reserva seria em Lublin, depois em Madagáscar, e finalmente, após derrotar Stalin, no norte da Rússia.

Spiegel - Mas não foi isso que aconteceu.
Friedländer:
Sim, a partir de Outubro de 1941, podemos observar uma transição. Hitler fazia declarações raivosas, aos berros, sobre os judeus quase todos os dias. A ofensiva na frente leste estava afundando na lama e, em 5 de Dezembro, o Exército Vermelho lançou a sua contra-ofensiva. Stalin não tinha sido derrotado – continuava a lutar. E alguns dias depois, os Estados Unidos estavam em guerra contra os aliados de Hitler, os japoneses. E como Hitler sabia que o presidente dos Estados Unidos, Franklin D. Roosevelt, estava a tentar convencer o povo norte-americano a lutar contra a Alemanha, e por razões psicológicas ele queria dar uma surra nele. Daí, Hitler declarou guerra contra os Estados Unidos, embora aquele não tenha sido o plano original. Como resultado, Hitler estava lutando numa guerra total em duas frentes, da mesma forma que ele lutou na Primeira Guerra Mundial.

Spiegel - E o destino dos judeus europeus foi selado?
Friedländer:
Em 1935, Hitler disse que, se outra guerra ocorresse em em duas frentes, ele estaria preparado para tomar medidas drásticas contra os judeus. Essa foi a lição que Hitler aprendeu da Primeira Guerra Mundial. O país não se permitiria a outra punhalada nas costas do inimigo interno, os judeus, que supostamente haviam traído a Alemanha em 1917/18. Em contraste com os eslavos, que os nazis viam como "Untermenschen" (sub-homens) passivos, Hitler temia os judeus como um inimigo activo. Consequentemente, não era suficiente matar os judeus –- ele queria destruir tudo que era judaico no mundo. Eu acredito que a decisão para fazer isso tenha sido tomada em Dezembro de 1941.

Spiegel - Como você explica o fato de que, imediatamente após o ataque na União Soviética em Junho de 1941, os Einsatzgruppen tenham assassinado primeiro homens judeus, mas depois também atiraram contra centenas de milhares de mulheres e crianças? A determinação absoluta para aniquilar os judeus estava claramente presente numa data anterior.
Friedländer:
Esse é um caso de radicalização cumulativa, como meu colega Hans Mommsen lhe chamou noutros contextos. Isso resulta da noção de uma guerra total, como a que Hitler lutava no leste europeu. Ela possui a sua própria dinâmica e a radicalização emerge dela mesma.

Spiegel - E isso levou ao assassinato de mulheres e crianças?
Friedländer:
No lado alemão, existia a ideia mítica disseminada de que os judeus ajudariam o Exército Vermelho. E havia o início, embora muito modesto, de uma guerra subversiva por parte dos soviéticos. Dessa forma, os alemães viam as mulheres como uma ameaça potencial, por exemplo, como mensageiras. E eles disparavam contra as crianças porque eles não estavam preparados para alimentar todos os órfãos. Mas essa ainda não era a decisão para destruir todos os judeus da Europa. A guerra subversiva também era direccionada contra os eslavos. Nas aldeias, os alemães matavam todos os habitantes quando um resistente era descoberto ou havia suspeitas de actividade de resistência.

Spiegel - Alguns colegas seus vêem Hitler como um ditador cercado por cúmplices que o pressionavam pelo Holocausto. Qual a sua avaliação do papel de Hitler?
Friedländer:
Sem Hitler não teria existido o Holocausto. Mas é claro que Hitler nunca poderia ter cometido o crime sozinho. Era a população, era a elite, cerca de 200 mil perpetradores somente na Alemanha – existia uma disposição para seguir em frente com isso, também por razões muito práticas, porque as pessoas esperavam ganhar uma vantagem material.

Spiegel - Nesse sentido, você concorda com seu colega Götz Aly quando ele diz que Hitler assassinou os judeus para que puder distribuir todas as suas posses pelos alemães?
Friedländer:
Aly exagera. Hitler definitivamente utilizou a propriedade e os pertences daqueles que foram assassinados para ajudar a manter as pessoas caladas, mas esse não era o principal objetivo.

Spiegel - Escreveu recentemente que “evidentemente todos os impulsos homicidas e as ilusões ideológicas estão adormecidos na natureza da humanidade.” Vê uma ameaça de que isso poderia acontecer novamente?
Friedländer:
Há alguns anos, dei uma palestra na Universidade de Notre Dame, em Indiana. E uma pessoa do auditório fez uma pergunta que ainda me incomoda: “se algo tão extremo como o holocausto foi possível, não temos de revisar a nossa percepção da natureza da humanidade?” Não consegui responder a essa pergunta. Não há dúvida de que um partido político extremista com uma ideologia violenta pode, dadas as circunstâncias correctas, cometer actos horríveis, como vimos com alguma extensão no Ruanda e no Camboja. Mas quase não consigo imaginar que um movimento comparável ao nazismo possa ser bem-sucedido novamente num país moderno. Hoje, as forças de neutralização que falharam no passado são muito fortes para permitir que isso aconteça.

Spiegel - Tem acompanhado de perto os desenvolvimentos políticos na Alemanha ao longo dos anos. Como será estar no mesmo local onde o vencedor do Prémio da Paz Martin Walser esteve em 1998 e se queixou da “exibição sem fim da nossa vergonha” nos media?
Friedländer:
O jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung especulou recentemente que eu responderia Walser mas não pretendo fazer isso porque eu honestamente não me importo com o que Martin Walser pensa.

Spiegel - Walser representa muitas pessoas que dizem que é hora de seguir em frente e colocar um ponto final no debate sobre o Holocausto.
Friedländer:
Eu lembro-me vagamente do debate sobre dar um tempo na questão, no final dos anos 1950, e de forma muito clara do debate em 1985, que mais uma vez se concentrou em dar um ponto final no assunto. A cada 20 anos, parece haver uma onda de sentimento, por outras palavras, outra geração cresce e pede que a questão seja deixada para trás. Mas aí ocorre justamente o oposto. O debate em meados dos anos 1980 levou à "Historikerstreit" (uma controvérsia intelectual e política na Alemanha Ocidental sobre como o Holocausto deveria ser interpretado). E hoje quando as pessoas na Alemanha falam sobre o lançamento sistemático de bombas nas cidades e os refugiados e as pessoas desalojadas, o Holocausto parece desaparecer. Mas na verdade elas estão abordando-o de outro ângulo. O que eles estão tratando aqui é a resposta dos Aliados para o Holocausto, por outras palavras, os alemães também foram vítimas. Dresden é comparada com Auschwitz e não com outra coisa.

Spiegel - Os alemães não conseguem tirar o Holocausto do seu sistema?
Friedländer:
É o que parece para mim. Mas não é só com os alemães. Veja o sucesso espectacular de um autor completamente desconhecido como Jonathan Littell em França com sua novela "Les Bienveillantes" (“Os benevolentes”) sobre um oficial fictício da SS que é responsável por organizar a “solução final”. Existe algo sobre a natureza extrema do Holocausto que hoje está firmemente ancorada na percepção ocidental do mundo – e que é reflectida nesse romance. Não consigo explicar isso exactamente, mas uma coisa é certa – a questão do Holocausto não vai desaparecer.

Spiegel - O actual debate sobre “vítimas” alemãs deixa-o preocupado?
Friedländer:
Não. Quando viajei para Bona no início dos anos 60 para trabalhar nos arquivos, tinha esses horríveis ataques de pânico. Hoje a sensação que tenho na Alemanha é a mesma que tenho em qualquer outro país. Tenho um neto aqui e minha filha é casada com um alemão e vive em Berlim.

Spiegel - Então aparentemente não está muito preocupado com o debate sobre a apresentadora de TV que elogiou as políticas familiares dos nazis?
Friedländer:
Li sobre isso. A senhora Herman aparentemente não sabe sobre o que está falando.

Spiegel - E o cardeal Joachim Meisner?
Friedländer:
Eu também li sobre o cardeal e acredito que ele é limitado. Provavelmente leva essas coisas mais a sério do que eu porque elas acontecem no seu país. Eu entendo isso muito bem. Mas estou mais preocupado com a política dos Estados Unidos.

Spiegel - No próximo ano, será lançado um filme sobre a tentativa de assassinato de Adolf Hitler por Claus Schenk Graf von Stauffenberg em 20 de Julho de 1944, com Tom Cruise interpretando o papel principal. O vencedor do Oscar Florian Henckel von Donnersmarck diz que espera que essa grande produção possa fazer mais “para melhorar a imagem da Alemanha do que 10 Campeonatos do Mundo” teriam feito. Acredita nisso?
Friedländer:
Quase ninguém nos Estados Unidos ouviu falar de Stauffenberg – alguns dos meus alunos em Los Angeles nem sabem quem foi Lenine. É razoável supor que um filme com uma estrela de Hollywood poderia dar a impressão de que Stauffenberg era uma “boa pessoa”. Mas a ampla maioria dos norte-americanos não tem ideia da história da Alemanha e o filme não vai mudar isso.

música: saul friedländer; entrevista
publicado por MJ às 21:08
link | comentar

Coordenação

MJ
Lisboa, Portugal

Perfil Completo

Contacto

europae65@gmail.com

Links

Tags

todas as tags

Posts Recentes

A Vida dos Livros por Gui...

Os Justos das Nações

Para Saul Friedländer, o ...

Enciclopédia do Holocaust...

Diabólica alquimia totali...

I conferência sobre o Hol...

Friedländer homenageado n...

A Vanguarda do Horror

«Shoah» de Claude Lanzman...

Uma obra dedicada à juven...

A banalização do Mal ou q...

Aristides de Sousa Mendes...

Ensinar o Holocausto aos ...

Somos todos Judeus

Os «Protocolos dos Sábios...

Charlotte Salomon

Um oficial do Exército al...

Holocausto: uma obsessão ...

"Memória do Holocausto". ...

Yad Vashem distinguido na...

Arquivo do Blog

Novembro 2007

Outubro 2007

Setembro 2007

Agosto 2007

Julho 2007

Junho 2007

Maio 2007

Abril 2007

blogs SAPO

Subscrever feeds