Terça-feira, 6 de Novembro de 2007

A Vida dos Livros por Guilherme d'Oliveira Martins

Ensinar o Holocausto no Século XXI” de Jean-Michel Lecomte, com prefácio de Esther Mucznik (Via Occidentalis, 2007) é uma obra de valor pedagógico promovida pelo Conselho da Europa que nos alerta para a importância de cuidar da memória de modo a prevenir a intolerância, a cegueira e a barbárie com que o mundo se confrontou no século XX, num tempo que muitos anunciavam de paz e de entendimento.

 
Auto-retrato de Félix Nussbaum (1942 ?), Museu Nussbaum, Osnabrük. O Autor foi morto na câmara de gás em Auschwitz (3.8.1944)


NÃO HÁ HISTÓRIA MAIS DIFÍCIL… - Hannah Arendt disse que “não há história mais difícil de contar em toda a história da Humanidade” do que a do “Holocausto”. E porquê? “Em primeiro lugar pelo sofrimento intenso de um povo, estilhaçando com fragor insuportável os limites do entendimento humano” – diz-nos Esther Mucznik. “Até hoje, o genocício nazi, programado, sistemático e colectivo permanece para a civilização humana como a referência ética do mal absoluto”. Mas como foi tudo isto possível, quando ninguém esperava? E como foi possível que acontecesse a partir de um país de arte e de cultura? O certo é que tudo aconteceu de um modo sistemático e terrível. Daí que a obra agora saída corresponda à procura de uma consciência moral e cívica que possa contrapor o respeito ao ressentimento e a liberdade à servidão. Nesse sentido, o projecto do Conselho da Europa visa “suscitar o interesse dos jovens pela história recente do nosso continente e ajudá-los a estabelecer ligações entre as razões históricas e os desafios com os quais estão confrontados na Europa actual”. Está em causa a ajuda à criação de uma identificação europeia, o desenvolvimento da análise crítica, a sensibilização para a importância da diferença e do outro e o encorajamento aos professores para lançarem as bases de “um ensino europeu da história”. A dimensão europeia na Educação passa, assim, por um melhor conhecimento da realidade, de tragédia, de diálogo e de conflito, que nos antecedeu, com todas as suas implicações. O estudo da “Shoah” (expressão que significa “catástrofe” e que é utilizada para designar o genocídio perpetrado pelos nazis e seus aliados contra os judeus) e do “Holocausto” (sacrifício) deve, no fundo, permitir-nos ir além das apreciações simplistas ou do mero culto do ressentimento. É essencial entender as fontes da banalização do mal, para que, no futuro, possamos prevenir a sua ocorrência. De facto, entre o excesso de memória e a sua ausência, temos de encontrar um equilíbrio que permita não esquecer, sem fazer da lembrança um motivo de vingança.


APRENDER COM OS FACTOS – Ao longo de 50 fichas elaboradas criteriosamente, podemos obter uma informação bastante rigorosa e circunstanciada sobre o judaísmo, sobre a doutrina nazi, sobre os campos de concentração, sobre as perseguições (também dos Rom/Ciganos e dos homossexuais), sobre a decisão de extermínio, sobre as câmaras de gás e a cremação das vítimas, sobre os campos de extermínio (Auschwitz-Birkenau, Belzec, Chelmno, Lublin-Maidanek, Sobibor, Treblinka); sobre os “sonderkommandos” (encarregados das operações nos campos de morte – desde a preparação para as câmaras de gás até aos fornos crematórios); sobre a situação nos diversos países afectados; sobre as reacções dos judeus; sobre “os justos” (que ajudaram o povo judaico durante a Shoah); sobre as opções dos Aliados; sobre o número de mortos (cerca de 5 milhões de judeus); sobre o regresso dos sobreviventes; sobre o silêncio; sobre o revisionismo e o negacionismo; sobre a filmografia do tema e sobre os sítios na Internet. Trata-se de um conjunto de informações sobre o inominável e o injustificável. Como entender tanta cegueira e tanta desumanidade? E como interpretar os resultados da discricionariedade pura? E fica a afirmação de Primo Levi que “menciona um conjunto de ‘pequenas razões’, pequenas partículas de humanidade que se juntaram e que conduziram à sua sobrevivência – por outras palavras, uma sucessão de pequenos pedaços de sorte, de acontecimentos fortuitos”. Por outro lado, fica a realidade insofismável que hoje não pode sofrer contestação: “apesar do reduzido número de sobreviventes, foram registados muitos testemunhos, o que nos leva a considerar por que razão todos contaram o mesmo e por que razão não existem quaisquer provas do contrário”.


A DIFICULDADE DA MENSAGEM – À medida que o tempo passa, atenua-se, contudo, o impacto do drama real e prevalece a ideia mítica ora dos actos heróicos de resistência ora do carácter difuso da culpa e da responsabilidade. No entanto, mais do que os mitos, o que importa é fixar a actualidade do tema e o risco da repetição de acontecimentos tão terríveis e dramáticos. Daí que nas orientações dadas aos professores, no âmbito deste projecto educativo, haja muitas vezes dúvidas e hesitações sobre a eficácia menor ou maior da utilização de determinado exemplo ou instrumento. De facto, temos de contar com a “dificuldade da mensagem” e com o facto dela ter tudo a ver com a construção de uma sociedade mais humana, onde os direitos, as liberdades, as garantias e a responsabilidade pessoal têm de ter um lugar cimeiro. E se nos lembrarmos do exemplo de Janusz Korczak no gueto de Varsóvia vemos que o melhor método educativo é o da prática e do exemplo: “desenvolveu um sistema de organização democrática dos orfanatos – as crianças eram tratadas como indivíduos com plenos direitos e tomavam parte na administração da comunidade”.


DEVER DE MEMÓRIA? - Tzvetan Todorov afirmou que «les enjeux de la mémoire sont trop grands pour être laissés à l’enthousiasme ou à la colère» (Les Abus de la Mémoire, Arléa, 1995, p. 14). Esta é a preocupação fundamental que temos de preservar, a fim de que não haja interpretações unilaterais e abusivas sobre a memória. O dever de memória obriga ao rigor crítico e a prestar justiça – o que também leva à necessidade de compreender as circunstâncias da história para além da vitimação e da ameaça. O entusiasmo e a cólera levam à incompreensão de que a memória se refere à humanidade, e de que, nesse sentido, tem de apelar permanentemente à capacidade de compreender e de nos pormos no lugar do outro.

retirado da web do Centro Nacional de Cultura

publicado por MJ às 23:14
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Quarta-feira, 10 de Outubro de 2007

Uma obra dedicada à juventude

Com o agradecimento à Via Occidentalis Editora publicamos o prefácio incluído na obra Ensinar o Holocausto no Século XXI, de Jean-Michel Lecomte, livro direccionado à compreensão do fenómeno do anti-semitismo que recentemente ganhou uma sinistra actualidade entre nós.


* * *

Prefácio à edição portuguesa por

Esther Mucznik

investigadora em assuntos judaicos

 

Em boa hora, decidiu a Via Occidentalis publicar a tradução do livro Ensinar o Holocausto no Século XXI, editado pelo Conselho da Europa.

 

Trata-se, como é referido na apresentação do mesmo, de uma obra  com uma preocupação essencialmente pedagógica com vista a fornecer um material de apoio – simultaneamente conciso, rigoroso e de fácil consulta –  a professores e alunos.

 

Ensinar o Holocausto não é um desafio fácil. Portugal não foi ocupado por Hitler durante a IIª Grande Guerra, nem sofreu as consequências do Holocausto no seu solo. Mas esta feliz circunstância histórica leva a que, praticamente, apenas a população judaica em Portugal  tenha laços afectivos, memórias concretas, uma relação directa com as vítimas do genocídio nazi. Com efeito, quantos jovens em Portugal poderão dizer “o meu avô contou-me...”? Obviamente bem poucos.

 

Talvez por isso o Holocausto nunca foi objecto de debate público em Portugal como o foi, embora tardiamente, nos países ocupados pelo nazismo. Assim para a maioria esmagadora dos alunos e professores portugueses de hoje, o Holocausto é um acontecimento de que ouviram falar na televisão, através de alguns filmes, de alguns livros ou de alguns textos inseridos em manuais escolares – apesar de há uns anos para cá o currículo escolar contemplar mais detalhadamente o estudo do nazismo. Mas para os alunos – e eu tive a oportunidade de o constatar pessoalmente várias vezes – o Holocausto é um acontecimento abstracto, visto frequentemente quase como uma ficção.

 

O facto de já se terem passado mais 60 anos, torna também mais difícil o ensino do Holocausto, não só pela capacidade de atenção e interesse dos alunos, como da própria motivação de professores e autores de manuais. Sabemos como a nossa sociedade – e não só a portuguesa – está virada para a vertigem da actualidade e para o efémero: o que é hoje acontecimento deixa de o ser amanhã. E neste contexto, sessenta anos é uma eternidade...

 

Mas não são estas as únicas dificuldades do ensino do Holocausto, nem talvez as principais. “Não há história mais difícil de contar em toda a história da Humanidade”, afirmou Hannah Arendt. Porquê? Em primeiro lugar pelo sofrimento intenso de um povo, estilhaçando com fragor insuportável os limites do entendimento humano. Até hoje, o genocídio nazi, programado, sistemático e colectivo permanece para a civilização humana como a referência ética do mal absoluto.

 

Mas também porque é uma história que põe radicalmente em causa os valores em que fomos formados, as nossas certezas mais profundas: que através da cultura e da educação o homem se vai aperfeiçoando; que é tanto mais moral quanto mais instruído; que a ciência é uma escola de progresso, racionalidade e aperfeiçoamento. O extermínio nazi deitou por terra essa perspectiva: ocorreu num dos países mais industrializados, povoado por uma das nações mais cultas e instruídas do mundo. “Esperávamos o pior, mas não o impossível”, afirma uma sobrevivente. Depois do Holocausto ficámos a saber que o impossível se tornou uma possibilidade em aberto.

 

Não é, pois, fácil ensinar o Holocausto e sobretudo educar contra o Holocausto. Mas é um assunto que não pode ser evitado porque tem a ver com os próprios fundamentos da nossa civilização. Auschwitz tornou-se, pela negativa, património da humanidade.

 

Na história negra deste período há, no entanto, alguns raios de luz representados por homens e mulheres que contra tudo e contra todos, tiveram a coragem de se opor à barbárie, escondendo e salvando judeus e não judeus, resistentes ou simples pessoas, arriscando frequentemente a própria vida. Ensinar o Holocausto no século XXI  evoca esses “Justos das nações” título a eles atribuído por Israel em reconhecimento da sua acção de salvamento. Entre eles nunca será demais lembrar Aristides de Sousa Mendes, cônsul de Portugal em Bordéus (França) que à revelia do seu governo e arriscando a sua carreira e bem-estar pessoal e familiar concedeu milhares de vistos à multidão de refugiados que procurava desesperadamente escapar da Europa ocupada.

 

Portugal declarou a neutralidade política durante a guerra e desde o seu início muitos judeus e outros perseguidos tentaram escapar aos nazis obtendo um visto de trânsito em Portugal. Mas, à medida que chegavam mais refugiados, a política de fronteiras foi-se tornando mais apertada: os cônsules só podiam conceder vistos depois de autorizados pela polícia política e pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros e, após a ocupação alemã de Paris em Junho de 1940, apenas a quem dispusesse de um bilhete de saída de Portugal e de um visto de entrada num país de exílio.  Apesar de todas estas dificuldades, houve mais de cem mil refugiados que conseguiram salvar-se através de Portugal, a maioria entrando clandestinamente ou com vistos dados por Aristides de Sousa Mendes. “Era realmente meu objectivo salvar toda aquela gente, cuja aflição era indescritível”, afirmará mais tarde Aristides de Sousa Mendes.

 

A sua coragem teve um preço exorbitante: Salazar demitiu-o e o cônsul ficou na miséria sendo obrigado a viver da caridade para sustentar a sua numerosa família até à morte em 1954. Outros diplomatas portugueses souberam também fazer prova de humanidade e compaixão: Sampaio Garrido e Teixeira Branquinho, na Hungria; José Luis Archer, em Paris; Lencastre e Menezes, em Atenas; Giuseppe Agenore Magno, cônsul honorário em Milão, todos eles concederam vistos sem autorização, comprometendo as suas carreiras e vidas pessoais.

 

No entanto, nenhum salvou tantos, nem pagou um preço tão elevado como Aristides de Sousa Mendes. Talvez por isso, no Yad Vashem, em Jerusalém, onde o cônsul tem uma árvore plantada em seu nome na Ala dos Justos, as autoridades israelitas considerem que entre todos, foi Aristides de Sousa Mendes que sozinho e contra o seu próprio governo salvou mais vidas. “Talvez seja por isso que a sua árvore é a mais alta de todas”, concluem com um sorriso...

 

A terminar, não quero deixar de saudar a editora Via Occidentalis pela publicação deste livro. Espero que ele contribua decisivamente para ajudar professores e alunos a conhecer e a reflectir sobre a pior catástrofe do século XX. Esta é sem dúvida a melhor maneira de impedir a sua repetição.

publicado por MJ às 14:20
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